(Entrou o rapaz pela porta. Não era por onde costumava entrar, mas por ali entrou desta vez. Tinha ares cansados de quem havia crusado mares.. paraísos.. infernos.. talvez muito mais, para ali estar.. e ainda assim sorriu ao vê-la, encostada junto à janela com seus ares de sonhadora..)
- Salve salve.. (ele disse como se aquilo tivesse de ser a primeira coisa a ser dita e percebendo não saber qual seria a segunda.. ao que ela respondeu com um simples, quase lacônico sorriso.. de canto.. sorrisos que não querem ser sorridos.. e sendo assim ele seguiu em frente..) Ouvi seu canto.. vim correndo.. nadando.. voando.. estive longe e essa lonjura pareceu fazer eterno o tempo..
- Seja bem vindo.. (ela disse como se esperasse por aquilo, mas aquele não fosse o devido momento.. e ele esticou as mãos tocando o sangue que escapava pelas feridas das asas..)
- Vim lamber suas asas..
- Hoje elas estão por demais cansadas.. mal tratadas.. quero apenas observar a paisagem e lembrar-me..
- Lembrar é bom, sou um colecionador de lembranças.. minhas e alheias.. guardo-as em mim até que se desfaçam ou se reconfigurem, se fundam, se transformem.. é bom lembrar..
- É.. às vezes é bom.. outras nem tanto..(Fez-se daqueles silêncios que tanto falam e ele sentou-se ali.. tirou do bolso da camisa branca, seria mesmo branca?.. Pois bem, tirou do bolso um cigarro e ascendeu fazendo uma branca e densa fumaça dançar pelo ar..)
- Quer dançar? (ele disse finalmente..)
- Por que?.. Para que?.. Para quem?
- Para nós oras.. por nós.. por todos que quiseres.. por ela.. por quaisquer uns.. ou por ninguém.. apenas dançar, fazer dos verbos.. movimento.. fazer do tempo.. lento.. fazer do sofrimento.. unguento que se passa, afinal tudo passa no seu devido tempo..
(Ela baixou os olhos como se aquela frase tão batida lhe ofendesse a atenção.. e ele prosseguiu talvez por não ter outra coisa a fazer..) Tens tanto.. tantos.. atentos ao seu manto, que esvoaça tão habilmente.. eu vi um pranto e vim cantar o teu encanto, a fim de instigar-te o canto.. o alarido.. decifrar-te o umbigo e equilibrar-me em teu abismo.. (As asas dele sacolejaram levemente fazendo a fumaça que se acumulava numa névoa seguir sua dança..)
- Fico agradecida..
- Fique feliz.. (ele propõem com seu sorriso mais animador.. os cabelos caíam-lhe aleatoriamente pelo rosto, tudo tinha um que de branco dentro da neblina que os arrancara de onde estavam, como se fosse uma núvem num céu de anil..) Que fico eu daqui hipnotizado.. não que qualquer sentimento seu tenha algo a dever à alegria.. seus espelhos são por demais representativos e suas semânticas temperadamente saborosas quaisquer que sejam os ânimos que os impelem ou as reações químicas que entrecortam as sinapses a conformá-los.. mas fique feliz e sorria seu mais belo sorriso e estes ares se farão estratosféricos.. esta terra se fará onírica.. essas criaturas se farão quimeras.. e nessa dança nos potencializaremos até dissipar-nos por toda a parte... (e baixou ele seu verbo, enquanto os lábios dela tremiam e os olhos tremulavam..)
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