Numeração. Nome. Registro geral... comprovante de pessoa física. Um sorriso enrugado. Ela correu os dedos velhos e enrugados sobre o papel com sua pontual e ordeira tinta preta perfeitamente grafada... uma luz branca solitária e díspare em meio ao papel...
- Você tem emprego?
- Não, não senhora. - disse a jovem de cachos com seu melhor sorriso para ser simpática com a anciã que a atendia, à despeito de todo cansaço e correria do dia-a-dia.
- Mas então você arranjou um emprego!
- Sim, começo no fim do mês.
- É que eu vi uma luz branca aqui sabe. Sabe, eu vejo essas coisas e quando vejo, pode saber, é porque uma benção vai aparecer pelo seu caminho...
- Uma benção? - a jovem disse naquela desconfiança inicial contra tudo aquilo que é estranho, que é seguida pela certeza na senilidade da senhora de pele enrugada e olheiras.
- Sim, uma benção. Você é casada?
- Não.
- Mas é noiva!
- Sim, sou noiva, mas.. - ela ficou embaraçada com aquele acerto.
- Mas? - inquiriu a velha senhora com a satisfação do acerto.
- Mas nada... nada não, a senhora já terminou?
- Quase, minha filha... quase... eu sei que está com pressa..
- Um pouco. Tenho outras coisas a fazer.. de pegar um nada-consta na polícia...
- Certo. Bem, aqui está. Boa sorte pra você e pro seu noivo, e quando chegar a benção não façam resistência. Deixem que ela entre na vida de vocês...
- Isso não é um filho não, né senhora? - disse a jovem já em tom apreensivo.
- Não. Quando é criança a luz que eu vejo é assim.. hmmm.. mais azulada sabe.. luz branca geralmente é coisa boa, assim.. pacífica.. coisa de vida boa..
Mais aliviada por não dar importância aos presságios da velha preenchedora de carteiras de trabalho, a jovem de cachos, sorriu, e ainda assim, ficou satisfeita de saber que a benção não seria o problema de ter filhos, que não seriam uma benção por agora. Despediu-se da velha, enquanto os olhos ávidos da próxima pessoa na fila já brilhavam espectantes pelo atendimento após quase uma hora de espera naquela galeria.
A velha senhora passou os olhos pelo ambiente de ar estagnado e luz bruxulenta e vacilante de subsolo. Respirou entre o bufar e o suspirar. Era mais feliz noutros tempos, quando abriam vísseras de animais para que os lesse e levavam-lhe oferendas para que fizesse suas divinações. Mas esses tempos haviam passado a muito tempo e ela sabia que não tornariam. Os oráculos eram mais respeitados no passado e suas palavras eram tidas como alicerceadoras de verdades... Estava cada vez mais difícil nesse tempo em que ninguém quer sonhar.. todos querem viver apenas aquilo que é real, quando o real não passa de um sonho... ela pigarreou e assistiu a caminhada do rapaz que vinha até sua mesa. Quando era jovem fora treinada para ler o funcionamento do mundo no vôo dos pássaros, ver as estruturas da vida nas entranhas ensanguentadas de qualquer bicho, saber os desígnios divinos e humanos nos restos de chá ou nas pedras dispostas na praia.. até mesmo em signos criados por muitos povos que ela sequer conhecera. Hoje os lia em carteiras de trabalho para pessoas que não acreditavam...
- Bom dia. - disse o rapaz sentando-se.
- Bom dia... - ela disse cansadamente...
Um comentário:
Gostei muito desse conto...da sapiência da senhora cansada e sem luz verde no horizonte... e pela actualidade na menina noiva de cachos e sorrisos oportunos.
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