terça-feira, 18 de março de 2008

Fantasia de um delírio inexato ou Mais hidromel...

(Era uma padaria. Dessas de tinta descascada na parede, muitos cartazes de mulheres graficamente tratadas pelo computador anunciando cervejas em posições apelativas, banheiros desagradáveis, alguns ovos esverdeados atrás de um vidro de higiênie duvidosa.. ou seja uma padaria, que podia ser um bar, podia ser um mercadinho.. mas se denominava padaria. Enfim, lá deu-se o encontro.. eles se viram, sorriram simpaticamente e sentaram.. os olhares tentavam falar, mas ainda não tinham achado o idioma certo...)
- Salve salve.. (ele disse como se fosse naturalmente a primeira coisa a ser dita..)
- Olá.. (ela disse meio sem jeito..)
- O que vai ser? (disse o homem da padaria)
- Uma cerveja.. dois copos..
- Mais alguma coisa?
- Por enquanto só isso.. (e ele voltou a olhar para ela, sorrindo da felicidade genuína que o encontro produzia. Se conheciam a tanto tempo que o próprio tempo não fazia qualquer sentido. E eles sempre tinham habitado as periferias dos próprios sentidos, escorregando em beiras de abismos, suspirando na intermitência de certas janelas.. debruçados sobre o beiral, um contato imbricado na poética do delírio puro... e assim se viam de novo pela primeira vez...) Pra mim é como se todo o mar explodisse numa míriade de gotículas flutuantes desdenhosas da gravidade, satisfeitas em refratar a realidade num turbilhão de possibilidades...
- Ai.. eu não sei como você consegue.. assim.. aqui.. entre o saleiro e o copo de cerveja... desculpa, eu sei que.. mas é tudo tão estranho... eu não consigo com a Juliana Paes rindo pra mim..
- Sempre teve esse sabor profano o nosso verbo, daí que não consigo navegar num céu sem as penas dos descaídos... é como se eu cuspice lírios porque plantaste tantas tulipas no meu estômago..
(Ela sorriu e baixou os olhos..) - Ah, eu queria tanto cantar com você até os muros arrebentarem, as asas sangrarem e nossos desejos alçarem vôo até o mar, nosso mar.. mas é que agora parece tão.. inapropriado.. você aí.. eu aqui.. assim, não era.. na boa..
- É que eu não me vesti.. (e os olhos dela se levantaram passando para a camiseta mundana toda azul da hering, um tanto desbotada das lavagens..) Meu pudor me impediu de vestir qualquer coisa.. achei que nada ficaria bem diante dos seus recortes.. as asas presas não permitiriam um conforto significativo.. e você teve o pudor de não se despir, aqui na padaria sua nudez seria explícita demais.. (ele bebeu todo o copo de café com cerveja em um só gole..) Mas descascá-la sempre foi uma massagem pro torpor de existir..
- Já são camadas demais desde que a primeira erodiu sobre as terras gregas..
- Eu sei, a poeira da estátua cuspiu mármore demais pelo jardim.. e medusa preferiu convidar medéia para um chá do que a nós se juntar..
- Só você sabe pintar o vermelho com esse tom de delírio que eu tanto gosto (ela disse esquecendo a parede de tinta descascada ao lado..)
- E só você rasgou as prosopopéias ínfimas dos transeuntes permitindo o vôo mais impactante..
- Eu vim porque aqui foi sempre o estar cujo escapar era mais doce...
- Eu estive aqui sempre sabendo que esse mundo dimensionado entre nós dois produzia os relâmpagos mais cortantes, os trovões mais retumbantes e os desvios mais excitantes...
- Você e suas rimas.. fazendo do diálogo uma esgrima...
- É que sempre pontuamos nossos movimentos com esses saborosos ferimentos, que adocicam os lábios.. chocam os sábios.. eu virei vampiro das suas asas, que só a tua franja varre minhas vitrines.. atiça minhas brasas com quaisquer sintaxes que destines...
(Ela ergueu a taça até os lábios como as ninfas faziam antes dos homens estuprarem o lirismo dos gestos.. sorveu o hidromel sabor de fantasias indianas oníricas.) - Foi um privilégio profanar esse seu campo florido.. gosto muito da paisagem daqui das ruínas..
- Pasárgada sempre é mutante.. e para receber tão nobre visitante, que é residente com direitos de presidente, mandei tudo colorir, as arestas retocar e uns desvarios alimentar, tudo para que não pares de vir.. veja, pintei fogos de artifício com as oito constelações mais importantes para te lembrar que as galáxias são seus olhos e o buraco negro do teu umbigo é o princípio...
- Nunca parei.. (ela disse sentindo a brisa cheiro de sândalo..) Apenas ondulo na tua língua...
- Perdoe-me as lágrimas, mas se todas as fabulas tivessem morais tão significativas, uma sinfonia de silêncio nos acompanharia até o precipício do nosso abraço..
- Ainda podemos cantar a tangente de nosso mergulho..
- Mais hidromel? (disse o formoso homem formado por ângulos obtusos, cacos de ônibus espaciais e areia de ampulhetas do Egito Antigo...)

15 comentários:

Samantha Abreu disse...

Olha!
Tua prosa...
que delícia!

um beijO!

Martinha disse...

Um encontro que não sendo propriamente o primeiro, causou muito impacto nessas duas pessoas, no local em que se encontravam...

Também gosto dos teus textos em prosa!
Beijo *

Anônimo disse...

Jorge,
gostei muitíssimo. Me fez lembrar de algo parecido que vivi.

Como sempre, você detalhando tão bem sentimentos e desejos.

Beijos.

Anônimo disse...

Diferente de tudo seu que eu já li.
Eu devo dizer que gosto muito do que você escreve.
Vou linkar você, tá?

Beijos.

Bianca Feijó disse...

Nossa, me trouxe algumas recordações...

Sempre, e sempre belos textos moço!

B.E.I.J.O.S

Tatiani disse...

Lindo o seu texto!
Gostei muito do diálogo... e da forma unica com que os personagens se sentiam entre as palavras.
...
;)

Mah disse...

denso.

envolvente.

imaginativo.

Anônimo disse...

Belo,cm tudo o que vc escreve.Pena que nao pude ler td ainda =/.

Flávia disse...

Uma padaria qualquer sendo palco e se tornando cenário tão lindo...
Adorei o texto!
Uma boa noite.

Krika disse...

Pois é, o Rio de Janeiro é palco para todas as estações. Lugar lindo, de gente linda e lutadora.

O texto de seu último post é seu? Muito bom ...

Bjo!*

_E se eu fosse puta...Tu lias?_ disse...

Escreve muito ou pouco mas escreve!!

Saudade também!

mil beijos

Anônimo disse...

Devo dizer que me senti honrada e presenteada com o que você escreveu pra mim no Quintal.
Achei a sua recriação do meu texto tocante e a mistura dele com outros textos meus (foi intencional?) fiocu muito, muito legal. Achei o seu texto um pouco pessimista em alguns momentos, mas completamente realista em todos eles.
E preciso te agradecer. Porque você foi a brisa que soprou meus cabelos.
Obrigada, moço das rimas e das palavras bonitas.

Muitos beijos.

Bianca Feijó disse...

"Eu vim porque aqui foi sempre o estar cujo escapar era mais doce..."

Gostei muito do seu último post,arrancou-me até sorrisos por vê-lo escrever pela primeira vez em suas "próprias" palavras não rimadas...rsrs...

B.E.I.J.O.S

Avid disse...

Aromas…
Brisas…
Ausências…
Tudo que tenho de ti…
Aqui…
Agora…
Bjs meus

Mari disse...

tu estais se superando, cara!
até me vi em uma padaria, daquelas com balcão para servir lanches... nossa!

a-mei! :D