Ele havia perdido sua floresta. Sina funesta para o peito que desembesta. A realidade que resta, assim, é esta. Um fauno besta sem festa, sem fresta, sem flor esta. Só cheio de bile indigesta.
Horizonte. O mar ali defronte. A ir e voltar. Um sem fim que não se conte, infinitos aos montes. Nada de rir. Nada de cantar. O astro rei já partia, mas ali na água fria que escurecia ainda se refletia. Tinha certa magia naquele ar de despedida quando a vida tão colorida vira cinza. Um fauno em ruínas. E era só. Digno de dó. Do cinza ao pó das feridas puídas.
Ele sentia os cascos na areia. Uma lágrima vadia pelo rosto passeia. Nada mais o incendeia. Não resta nenhuma candeia. É o vento de gelo que sua tristeza lambia, assim como enrolava os longos cabelos em seus chifres recurvos sem qualquer sintonia. Era apenas mais uma noite de qualquer dia, onde bem podia se afogar e tudo naquela enseada acabaria, como se algo pudesse realmente acabar.
Mas eis que do mar, a assomar, insular, fazendo a água ondular, o tempo parar e até o sol se dobrar para se admirar: ela. Com sua luz vermelha, laranja e amarela. Quente, incandescente e bela. Aquarela. Compondo todas as cores possíveis tal tela. A vela, o farol, a erupção, a personificação das estrelas infinitas maiores que sol, ela, que venceu a escuridão. Ali ao alcance da mão. Anunciação. Por certo, nunca houve criatura mais singela em canto algum da Criação.
A dama erguida das águas de espelho, espanou o velho, gotejou o instante e soprou o novo. Ela se misturou à réstia de luz que o sol em despedida derramava, enlaçou as possibilidades do existir no fios ainda úmidos dos cabelos. Nada lhe fazia jus, pois só ela o olhar conduz, para o âmago das profundezas de tudo.
E ele ali sem norte, só ardendo nos cortes, não se fez de forte, tampouco erigiu algum porte. Tão perto nesse porto temendo o parto compôs aquela trama do afã de um peito que conclama "salva-me de mim".
- Não sou assim, pobre fauno. A ninguém eu salvo. Muito menos os invoco. Sigo sendo sereia mesmo se não os toco. Não são vocês meu foco, meu foco é o mar.
- O mar é seu, musa minha. Mas tenho pés na areia, ar nos cabelos e esse frio na espinha. O fim se avizinha. E esse algo em ti me desalinha. Me aninha. Me arranha. Me invoca. Se você me toca, até se sou essa derrota, restará esse meu canto eterno da façanha de estar ao teu lado. Meio funk, meio fado. Uma ladainha que da tua grandeza não se avizinha, mas que provoca, que conclama, que anima e que apanha. Faz valer nesse colorido, o nascer de toda poesia. Mesmo aqui diante do meu ocaso raso, teu oceano é um abismo infindável.
- Não rogue. Talvez lhe cause choque, mas eu nunca maltrato outrém com minha lábia. Depois de tantas eras estou ainda viva, se não sábia. Se foram as lâmias, as súcubos, as erínias, as vampiras e outras formas femininas entre Ishtar e Maria. Mas eu sigo, como consigo, entre tanto perigo, ainda ligo pra encantar-me com o céu, olhando-o do meu mar. Mas tenho esse mar todo meu que não me cabe doar, alienar ou entregar. E digo que o vosso escarcéu nada me diz. Palavras ao léu. Não sou deusa, nem monstro marinho. Não estou no ocaso, nem no copo de vinho. Não vim pra ser teu caminho ou seu ninho. Até tu, fauno, nasceste sozinho. Goza a sorte que quiseres entre os seres por mais que as palavras temperes.
- Então para que esse encontro? Como se dá tal confronto entre ser tão e mar. Como não amarrar duas vontades a se desejar. O mundo todo é feito de monstros. Todos somos deuses perdidos de nossos encantos. Apoteóses decadentes desde o primeiro instante e cada vez mais. Te mostro e aposto que somos, podemos, fugazes e famintos. Estrelas queimando pelo espaço vazio.
O toque dela foi intenso e o derreteu de início. O beijo dela foi intoxicante e um vício. O aconchegar-se foi como sair voando pelo precipício. O balanço. A dança. Pêlos dele, escamas dela. Carne de ambos. Carinho. Ferver do sangue. O colar dos umbigos. Universos se fundindo.
Ela cantou no seu ouvido.
Ele rimou pelo pescoço dela.
Ela o domou pelos chifres.
Ele a tomou pelo mar.
Voaram.
E por fim, ali, naquele mar, ele se afogou.
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