sábado, 10 de fevereiro de 2007

Julio Cortázar

Uma homenagem...

"Esticando o braço esquerdo o 404 procurou a mão de Dauphine, encostou apenas a ponta dos dedos, percebeu em seu rosto um sorriso de incrédula esperança e pensou que iam chegar a Paris, que tomariam banho, que iriam juntos a qualquer parte, à sua casa ou à dela para tomar banho, comer, tomar banho interminavelmente e comer e beber, e que depois haveria móveis, haveria um quarto com móveis e um banheiro com espuma de sabão para fazer a barba de verdade, e privadas, comida e privadas e lençóis, Paris era uma privada e dois lençóis e água quente escorrendo no peito e nas pernas, e uma tesourinha de unhas, e vinho branco, beberiam vinho branco antes de se beijar e sentir cheiro de lavanda e colônia antes de se conhecer de fato em plena luz entre lençóis limpos, e tornar a tomar banho de brincadeira, amar-se e tomar banho banho e beber e entrar no cabeleireiro, entrar no banho, acariciar os lençóis e acariciar-se entre os lençóis e amar-se entre a espuma e a lavanda e as escovas antes de começar a pensar no que iam fazer, no filho e nos problemas e no futuro, e tudo isso desde que não parassem, que a coluna continuasse andando, embora ainda não se pudesse passar para a terceira, continuar assim em segunda, mas continuar. Com os para-choques tocando no Simca, o 404 encostou-se para trás no assento, sentiu aumentar a velocidade, sentiu que podia acelerar sem perigo de bater no Simca, e que o Simca acelerava sem perigo de bater no Beualieu, e que atrás vinha o Caravelle e que todos aveleravam mais e mais, e que já se podia passar para a terceira sem que o motor sofresse, e a alavanca entrou inexplicavelmente na terceira e a marcha se tornou suave e acelerou ainda mais, e o 404 olhou enternecido e deslumbrado para a sua esquerda procurando os olhos de Dauphine. Era natural que com tanta aceleração as filas já não se mantivessem paralelas; Dauphine havia-se adiantado quase um metro e o 404 via-lhe a nuca e o perfil, no momento exato em que ela se virava para olhá-lo e fazia um gesto de surpresa ao ver que o 404 se atrasava ainda mais. Tranquilizando-a com um sorriso, o 404 acelerou de repente mas quase em seguida teve de frear porque estava a ponto de bater no Simca; tocou secamente a buzina e o rapaz do Simca olhou-o pelo espelho retrovisor e fez um gesto de impotência, apontando-lhe com a mão esquerda que o Beaulieu colado ao seu automóvel. O Dauphine estava a três metros mais adiante, à altura do Simca, e a menina do 203, na altura do 404, agitava os braços e mostrava-lhe a boneca. Uma mancha vermelha, do lado direito, desorientou o 404; em vez do 2HP das freiras ou do Volkswagen do soldado avistou um Chevrolet desconhecido, e quase em seguida o Chevrolet avançou seguido por um Lancia e por um Renault 8, à sua esquerda se emparelhava um ID que começava a levar vantagem metro a metro, mas antes que fosse substituído por um 403, o 404 conseguiu avistar ainda na dianteira o 203, que já encobria o Dauphine. O grupo se deslocava, já não existia, Taunus devia estar a mais de vinte metros adiante, seguido por Dauphine; ao mesmo tempo, a terceira fila da esquerda se atrasava, porque em vez do DKW do pasageiro, o 404 enxergava a traseira de uma velha caminhonete preta, talvez um Citroen ou um Peugeot. Os automóveis corriam em terceira, adiantando-se ou perdendo terreno de acordo com o ritmo de sua fila, e ao lado da auto-estrada viam-se as arvores fugindo, algumas casas entre a massa de névoa e o anoitecer. Depois, foram as luzes vermelhas que todos acendiam seguindo o exemplo dos que iam adiante, a noite que se fechava de repente. De quando em quando soavam buzinas, os ponteiros dos velocímetros subiam cada vez mais, algumas filas avançavam a setenta quilômetros, outrs a sessenta e cinco, algumas a sessenta. O 404 havia esperado ainda que o avanço e o recuo das filas lhe permitissem chegar novamente até o Dauphine, mas cada minuto o persuadia de que era inútil, de que o grupo se dissolvera irrevogavelmente, de que não voltaria a repetir-se os encontros de rotina, os rituais mínimos, as conselhos de guerra no automóvel de Taunus, as carícias de Dauphine na paz da madrugada, as risadas dos meninos brincando com seus automóveis, a imagem da freira passando as contas do terço. Quando se acenderam as luzes dos freios do Simca, o 404 reduziu a marcha com um absurdo sentimento de esperança e, apenas apertando o frei de mão, saltou do automóvel correndo adiante. Além do Simca e do Beaulieu (mais atrás estaria o Caravelle, mas pouco lhe importava) ele não reconheceu nenhum automóvel; através dos cristais diferentes olhavam-no com surpresa, e talvez com espanto outros rostos que nunca vira. Soavam as buzinas e o 404 teve de voltar ao seu automóvel; o rapaz do Simca fez-lhe um gesto cordial, como se compreendesse , e apontou animadamente em direção a Paris. A coluna punha-se de novo em marcha, lentamente durante alguns minutos, e logo após como se a auto-estrada estivesse definitivamente livre. À esquerda do 404 corria um Taunus, e por um segundo o 404 achou que o grupo se recompunha, que tudo entrava na ordem, QUE SE PODERIA SEGUIR ADIANTE SEM NADA DESTRUIR. Mas era um Taunus verde, e no volante havia uma mulher com óculos preto que olhava fixo para a frente. Nada mais se podia fazer a não ser entregar-se à marcha, adaptar-se mecaniamente à velocidade dos automóveis, em redor, não pensar. No Volkswagen do soldado devia estar seu casaco de couro. Taunus tinha o romance que lera nos primeiros dias. Um vidro de lavanda, quase vazio, no 2HP das freiras. E ele tinha ali, tocando-o às vezes com a mão direita, o ursinho de veludo que Dauphine lhe presenteara como mascote. Absurdamente, aferrou-se à idéia de que às nove e meia seriam distruibuídos os alimentos, teria que visitar os doentes, examinar a situação com Taunus e o camponês do Ariane; depois viria a noite, seria Dauphine subindo sigilosamente em seu automóvel, as estrelas ou as nuvens, a vida. Sim, tinha de ser assim, não era possível que isso tivesse acabado para sempre. Talvez o soldado conseguisse uma ração de água, que havia faltado nas últimas horas; de qualquer maneira se podia contar com o Porshe, sempre que se lhe pagasse o preço pedido. E na antena do rádio flutuava alucinadamente a bandeira com a cruz vermelha, e se corria a oitenta quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, porque essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente.

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