sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Édipo e a Esfinge


Em volta, tudo era o caos. Aquele era um encontro marcado, pois oráculos já o haviam anunciado. Ainda assim, ele não deixou de se fascinar com aquele ser parte mulher, parte felina.
- Aqui está você, viajante. Em breve, serás mais um que terei devorado.
- Guarda teu mistério. Não temo o que possa acontecer.
- Todos dizem o mesmo. E ainda assim, ao fim, eu os devoro.
- Eles devem se perder no seu olhar, nos desenhos do teu corpo, nas malícias das tuas palavras. Mas não eu. Eu nada tenho a perder, por isso nada lhe devo.
- Pobre mortal. Eu destruí Tebas das sete portas, eu devorei os touros de Creta, humilhei os lamassus de Uruk, coloquei de joelhos as dinastias do Nilo. O que poderia você, roto e poido, faminto e cansado, fraco e humano fazer contra mim?
- Decifrar-te. Não é isso que exiges? "Decifra-me ou te devoro"? 
- Sim! - O fogo queimou nos lábios dela. Longamente. Como se fosse a própria eternidade e ele não pode deixar de admirar aquela demonstração de poder divino. Édipo sabia que haviam muito deuses para além dos aliados de Zeus. Alguns buscavam governar os mortais, enquanto outros apenas buscavam consumi-los sem falsos moralismos. Eram tão antigos quanto o primeiro ser consciente.  - Decifra-me ou te devoro. É isso mesmo. Se conhece o protocolo, onde está o presente que impede que eu te devore antes que decifre, quando eu bem quiser? 
- Aqui está...
- Onde estão as coxas fartas do gado ou a vida de uma criança cujas possibilidades guardarei no meu íntimo.
- Trago algo maior... Sabedoria!
A esfinge tomou o livro. Era um tomo mágico. Tratava de um herói anunciado que reordenaria o estado das coisas, para afastar as trevas do caos. Um messias indeciso que romperia as amarras primitivas que iam se acumulando ao longo dos tempos para fazer ressoar uma nova harmonia, que só existiria para ser soterrada, como todas as outras antes dela.
- Isso não é sabedoria. É ilusão. Os homens são sempre tolos, porque são limitados. Veja as marcas no meu corpo, agora pode vê-las melhor. Não são todos que as veem. Elas mostram outras eras, são signos da dor inerente à entropia de existir. Você crê que vem aqui instaurar algo novo. Pobre tolo. Vens apenas mergulhar no abismo do vazio. Se não estivesse tão preso a essas bobagens ilusórias, ao menos poderia gozar da vertigem da queda.
- Não me perco em sua lábia, divindade. Eu aguardo teu enigma. Fiz minha oferenda.
A Esfinge cuspiu algum fogo que consumiu o tomo, erguendo fumaça e cinzas ao céu. Curiosamente, uma brancura mortífera a cercou. Longe de erguer trevas, aquela divindade felina e feminina brilhou como se fosse o próprio sol. Ao invés de terror, foi a magnificência que se impôs e Édipo maravilhou-se como nunca tinha acontecido. Sempre se diz que os mortais que se atrevem são consumidos pelo poder transcendente de tudo que era divino. Ali o destino do mortal Édipo foi selado e não no sangue que ele derramou no caminho. Mesmo que já fosse acompanhado pelas Eríneas, foi nesse ponto que seu rumo se definiu.
- Qual o ser que no alvorecer caminha sobre quatro patas, mas que ao estar o sol no zênite o faz apenas com duas, para já próximo do crepúsculo precisar de três pernas para avançar? Responda com a sabedoria que acredita ter, pois sua resposta será recompensada com toda minha voracidade.
- Eu conheço a resposta, mas não irá aceitá-la.
- Responda ou morra.
- Esse ser é mortal e humano. De manhã, seja mulher ou homem, engatinha com mãos e joelhos próximo de sua primeira mãe, a terra. Quando cresce, liberta-se um pouco dela para seguir apenas com os pés. Por fim, quando principia o findar de seus dias e sua mãe o chama de volta, este apoia-se em um cajado para pode prosseguir.
A Esfinge nada disse. Ela apenas encarou Édipo no fundo dos olhos como não fizera verdadeiramente até ali. Édipo sentiu toda a dor que habitava aquela existência de tantas eras. Mas também sentiu o calor máximo de tantas vidas sorvidas que alimentavam aquela alma. Ele sentiu como se sua alma também estivesse sendo tomada e mergulhada naquele mar morno e brando que apaziguaria suas inconstâncias para apenas servir a algo maior. Não cabia mais em si. Sentiu os lábios dela em seu pescoço, que antecederam as presas que rasgaram sua carne. O prazer foi sem fim. As unhas marcaram suas costas e as mãos dele desceram pelos seios e pelo que havia de mulher naquela forma. Logo, ela estava sobre ele e o dominou totalmente. Por mais que o consumisse, ela deslizava e derrama-se sobre ele de modo a lançar ondas de êxtase pelo espaço. Nada dele restaria, mas Édipo já não se importava.
Foi então que ele abriu os olhos. Viu o céu. Sentia o cheiro doce, as dores pelo corpo. Mais adiante, a cidade de Tebas.

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