terça-feira, 18 de novembro de 2008

Dano ou Estar...

(Ele correu os dedos pelo papel. A caneta havia caído pesada sobre a materialidade que servia de veículo àquelas palavras.. e isso facilitava sua leitura...)

- Decidi escrever-te porque não mais aguentava pensar em você, precisava expulsar esses pensamentos de mim para o papel, para fora de mim, para algo alheio a nós dois...

(Ele parou. Levantou-se e deu três passos longos. Chegou até o som e ligou-o e apenas deixou tocar o cd que por lá já estava..)

- "The lunatic is on the grass.. the lunatic is on the grass.. remembering games and daisy chains and laughs.. got to keep the loonies on the path..."

(Tomou a taça na mão esquerda e tornou à leitura manual..)

- Muitas, tantas, inúmeras vezes as palavras me assaltam, me corroem, me impelem e dobram minha vontade com todo esse potencial limitante de percepções. Não me entenda mal, o problema não é você.. nunca foi.. nunca será. O problema sou eu.. sempre foi.. sempre será. É essa maldita besta insaciável que vive em meu íntimo, desejosa de banquetes apoteóticos a todo instante e desavergonhada de pedir, ainda assim, um 'teco' de qualquer lanche de outrém que lhe passe pela vista...

"The lunatic is in the hall.. the lunatics are in my hall.. the paper holds theirs folded faces to the floor.. and every day the paper boy brings more..."

(O papel ainda tinha o perfume dela. Era sempre inebriante e instigante aquele perfume, que para ele tinha um certo cheiro de kinder ovo.. ao mesmo tempo que conseguia invadir suas narinas, penetrar escorregadio pelo seu íntimo e atiçar suas partes. Bebeu vinho..)

- Por isso cheguei até você. Por isso preciso seguir o meu caminho. Sei que deve doer muito ler o que estou dizendo, mas tenho de ir para não me perder. Ficar seria dar algo de mim, que uma vez dado, me fará uma falta suprema. Não taxe-me de egoísta.. não que eu não seja.. sou sim, por escolha, inclusive.. mas não uma egoísta qualquer, sou egoísta pelo bem do equilíbrio universal. Posso jurar meu amor, mas não posso trair a mim mesma. Você que bebeu do melhor e do pior de mim, não irá querer ficar para ver o vinho tornar-se vinagre...

"And if the dam breaks open many years too soon.. and if there is no room upon the hill.. and if your head explodes with dark forebodings too.. I'll see you on the dark side of the moon..."

(O vinho já não desceu tão doce. Ele afastou a taça amarga, que agora mais parecia um réles copo de requeijão. Tateou o cinzeiro e retirou de lá uma ponta sobrevivente.. deixou a carta e acendeu-a. Deu uma longa tragada e a prendeu dentro de si, apenas para sentir a fumaça castigar seus pulmões. Não queria sentir nada de bom naquele momento..)

- Houveram tantos antes de você. Haverão muitos ainda.. eu espero.. pelo menos é como sempre tem funcionado. Mas nenhum como você. Como sei que nunca encontrará ninguém como eu. Não por sermos especiais. Simplesmente por sermos humanos. Demasiado humanos. Incomensuravelmente humanos.. mundanos.. fulanos e ciclanos...

"The lunatic is in my head.. the lunatic is in my head.. you raise the blade, you make the change.. you rearrange me untill I'm sane..."

(Soltou a fumaça, que já era quase ar. Seus sentidos inclinaram-se um pouco, mesmo que o mundo permanecesse na escuridão de sempre. Um mundo sem cores, sem curvas, ângulos e entalhes. Um relógio para ele era muito mais um tic-tac constante, do que um círculo numérico e cíclico. Uma carta era pra ele um ato quase sexual de desvendar um corpo com seu arguto tato.. e ela sabia muito bem disso...)

- Eu queria ter o direito de te dizer que sou sua. Mas seria mentira. E não que eu não minta.. minto o tempo todo.. mas seria leviano lhe retribuir dessa forma, seria como cuspir nos seus óculos. Um dia já acreditei que podíamos ter as pessoas.. hoje sei que podemos estar com elas e nada mais. E estar com você foi profanamente divino. Nunca ninguém me tocou como você. Muitos correram a mão pela minha carne, poucos pela minha alma.. nenhum antes, pelos meus medos. E sei que eu vi em você o que me ensinastes a ver de olhos fechados. Nosso retrato sempre ficará aqui guardado, num belo lugar do álbum, com menção honrosa.. entre o meu cão Gumercindo e um coleguinha de 2a série chamado Leonardo Matias da Silveira que me roubou o primeiro beijo que tenho lembranças...

"You lock the door.. and throw away the key.. there's someone in my head but it's not me..."

(O baseado findou-se, já quase lhe queimando os dedos. Largou-o de volta no cinzeiro transbordante sobre a mesa de carvalho pintada de tinta acrílica branca.. o branco sempre tinha uma textura diferenciada das demais. Largou novamente a maldita carta da maldita dama com suas malditas palavras. Levantou-se e foi até a janela. Eram cinco passos médios. Parou esticou os braços e o batente estava lá como devia. Abriu-a. Sentiu a brisa da noite, desejoso de que ela trouxesse um perfume menos embriagante. Veio apenas o cheiro da fumaça suja da cidade.. da urina feita nas junções entre o prédio e a calçada.. o excremento de pombos que recobriam o telhado.. as damas da noite, que no parque, ao longe, ondulavam ao sabor do vento.. pensou por onde estaria o mar...)

- Sendo assim, meu oráculo.. meu profeta.. meu apóstata.. meu espelho.. tenho de ir e já tendo ido, deixo este pedaço de mim transcrito para que nunca digas que não lhe dei nada. Sei sim que tanto recebi e tão pouco dei.. mas assim é a nossa natureza.. você é de dar, eu sou de receber.. e sou sedenta de muitas fontes.. sou como o mar, que precisa de muitos rios e da chuva e de sabe-se lá mais o que, para seguir em seu movimento de ir e vir. Quando nos encontrarmos novamente, sorria com carinho...

"And if the cloud bursts, thunder in your ear.. you shout and no one seems to hear..."

(Retirou as mãos do batente velho e já cheio de fissuras do tempo e levou-as até o cabideiro, ao lado, sempre ao lado, onde estava seu chapéu. Colocou-o sobre os cabelos longos como faria um gângster em um daqueles filmes antigos que ele nunca vira. Pegou o sobretudo, vestiu-o sentindo desde já o peso do que havia nos inúmeros bolsos.. caminhou os oito passos que o separavam da porta.. passos pequenos...)

- Ainda assim, sei que tens todo o direito de me odiar. Não o recrimino.. talvez ninguém me odeie mais do que eu mesma. Minha mãe sempre me dizia que eu era minha pior inimiga e não que eu devia tomar cuidado. Nunca fui do tipo cuidadosa mesmo. Mas que seja um ódio amável, ódio de querer arrancar-me do mundo e prender-me numa gaiola dourada, com boa água e alpiste da melhor qualidade. Certamente seria a mais bela gaiola de minha vida. E, ainda assim, contigo lá.. com água.. alpiste.. conforto.. vinho, poesia e boa música.. ainda assim, não seria a liberdade. Perdoe minha vaidade e minha vã idade, mas tenho pés inquietos, asas sangradas e braços abertos para receber muitas flechadas...

"And if the band you're in starts playing different tunes.. I'll see you on the dark side of the moon..."

(Pegou a bengala que sempre ficava junto à porta. Girou a maçaneta. Olhou uma última vez para mesa, onde não mais jazia a carta, que chegara ao chão levada pelo vento que vinha da janela, como se pudesse vê-la. Suspirou uma longa desilusão. O corredor o esperava com a luz que se acendia sozinha. Pensou se deveria chorar. Acabou por sorrir o sorriso de quem já chorou demais. Fechou a porta atrás de si e foi-se adiante pela escuridão...)

- Por isso tenho de ir.. sozinha.. avante pela escuridão. Até qualquer dia, até um dia qualquer, onde talvez eu não parta, onde talvez você não fique, onde talvez eu suplique por estar farta de tanta tolice. Agora só sei que preciso ser tola e nada mais.. até outro dia.. meu amor tão fulgaz...

"I can't think of anything to say except... I think it's marvellous! HaHaHa!"

9 comentários:

Anônimo disse...

Poeta, que intenso isso!
Não quero soar repetitiva, mas adorei. De novo!

lindo, lindo e lindo o que ele fez com as palavras.

super beijos

Yara Souza disse...

tua carta:
um ato, um quase
poetílico
que vaza...

Camila disse...

Que carta!
Escrevi algumas... mas nunca as enviei...
Beijo

Camila disse...

Não gosto de cartas de despedida. Não gosto de despedidas. Não gosto de pontos finais. Não gosto de finais. Os tristes não.

Um 'teco' pode resolver todos os problemas, pelo menos por um instante. Há quem não queria isso? E lendo isso tudo, lembrei de um episódio do meu passado. Entre desamor, baseado e lágrimas.

E li essa carta escutando Brain Damage. Porque Pink Floyd é sempre uma boa trilha sonora.

Beijos.
E salve Jorge!

Anônimo disse...

Esse fundo musical inspira as mais belas cartas e até despedidas ficam suaves.
Não aguento mais dizer adeus, não aguento.

lindo dia
beijos

Nathália E. disse...

Imaginei a cena perfeitamente.
Lindo. De verdade.

Beijo!

• c. disse...

"O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula."


ps. gostei do diálogo antigo com meu antigo.

Meire disse...

Boquiaberta.

Unknown disse...

Wow, vc escreve muito bem, moço! Parabéns!!! ;)