(Ele a olhou entrar com aquela arrogância de quem não deve nada a ninguém..)
- Boa noite.. (ele disse em tom de ofendido, vendo-a trazer os sapatos nos dedos da mão direita, um cigarro equilibrado nos lábios, a bolsa pendendo pra frente e as chaves na outra mão ainda junto à porta...)
- Ah.. oi.. você não devia fazer essas coisas.. eu posso me assustar algum dia.. parece um fantasma com essa cara pálida no meio do escuro.. (ela disse sorrindo desajeitadamente, tentando parecer ereta e equilibrada e fechando a porta. Isso, no entanto, provocou a queda de um dos sapatos.. ela sorriu mais largamente e se abaixou despudoradamente para pegá-lo.. ele olhou pras coxas dela e imaginou grandes roxos sob a meia-calça na penumbra.. imaginou o cheiro do suor misturado ao dela, ao tabaco e ao alcool..)
- Acho que não vai haver um dia! (ele disse tentando ser ríspido, mas sendo apenas seco..)
- Ãhn?! Ah.. bem.. (ela disse ficando ereta mais uma vez, sentindo uma tontura que pareceu mais importante que tudo até ali e tendo a impressão de sentir um cheiro..)
- Não está nada bem.
- Sim.. sim.. eu sei.. é que.. (ela apagou o cigarro contra as costas da porta numa quadratura já repleta de marcas negras pontuais..) .. desculpe.. eu limpo amanhã..
- Não precisa. (ele se levantou..) Eu tô indo embora..
- E pra onde você vai? (ela largou os sapatos no chão e tirou a bolsa com a outra mão..)
- Vou voltar pra casa.. de certo modo...
(Ela riu por dentro..) Pra SUA casa? (mas seus lábios apenas tremeram..)
- De certo modo.. eu vou.. tenho de ir.. não posso mais ficar nesse lugar com você...
- Claro, claro.. (ela disse se permitindo sorrir, dando de ombros, enquanto ia para o banheiro..) Pobre de você.. tão puro e imaculado antes de ser estuprado pelos meus maus modos... (ela baixou a calcinha, deixando a porta aberta e sentou-se no vaso...)
- Você podia ter tido alguma consideração por..
- Pela sua imaculada perfeição? Pelo seu cabelo bem penteado? Pela porra do teu carro zero? Ou quem sabe, pelos filhas da puta dos seus papais... (as palavras dela mesclavam-se ao som da urina encontrando a água parada no fundo do vaso.. seguiu-se o som da descarga e o do rolo de papel higiênico que é puxado..)
- Pelo meu amor.. (ele murmurou indo em direção à porta antes de puxá-la..)
- Mas eu tive.. (ela disse vindo do banheiro..) Eu comi o seu amor.. mastiguei cada pedacinho.. me enfastiei dele.. dormi perguiçosamente a cesta.. depois vomitei como cachorra apenas para comê-lo de novo.. e depois o expeli nas minhas fezes, na minha urina e no meu suor.. (ela alcançou a bolsa e tirou dela o isqueiro e a carteira de cigarro..)
- Mas eu prefiria ser saboreado.. curtido.. (ele disse deixando correr uma lágrima solitária..) Eu queria que você me amasse e não que me devorasse..
- Ora, meu bem, pois vá tomar no cú você e seu amor de principezinho acastelado.. aqui é o mundo de verdade.. amor movido a combustível batizado e altamente poluente.. (ela soprou a fumaça satisfatória da primeira tragada..)
- Você precisa dessas metáforas ridículas.. (foi o rancor que falou por ele..)
- Por que não? Não tenho medo de fazer comparações..
- Claro.. você e sua sábia experiência.. suas podres experiências..
- Pois é.. mas você bem que gostou.. (ela disse sorrindo com malicia, batendo a cinza no chão e voltando a tragar com um brilho felino nos olhos..)
- Eu.. eu.. eu estava.. intoxicado..
- Claro.. claro.. "é sempre mais fácil achar que a culpa é do outro..".. ou melhor.. é sempre mais fácil achar que a culpa não é nossa...
- Eu fiz tudo que eu podia.. enquanto você..
- Não, queridinho. Eu SEMPRE faço tudo que posso.. você, por outro lado, começou a parar de fazer por só se preocupar com o que eu faço..
(Ele preferiu virar-se mudo, xingando-a apenas com os olhos, enquanto passava pela porta.. mas à frente ele viu a moça a quem tinha pedido que aguarda-se. Ela era quase imperceptível nas sombras.. parecia fazer parte delas.. ela sorriu pra ele..) - Pronto?
- Sim.. (ele disse tentando esquecer o que se passara.. pensou com otimismo no que o aguardava..
Em outra direção, alguns passos para trás, uma mulher entrava no próprio quarto e encontrava o cadáver com uma bala nas idéias e os miolos vermelhos de forma impressionista estampados na parede...)
21 comentários:
Tudo que foi escrito aqui é tão humano, tão real que prendeu minha atenção do início ao fim e por alguns instantes roubou minha respiração.Ler seu espaço é sem dúvida sentir à poucos centímetros um turbilhão de emoções e idéias.
Vou tentar depois dessa adrenalina escrita recuperar o ar, terminar minha taça de vinho ouvindo minhas músicas prediletas, para depois entregar-me aos braços de Morfeu...
Até ....
Gláucia
um manifesto antropofágico pelo amor...
Nada como comê-lo, processá-lo e cagá-lo devidamente.
E o que sair, é a verdadeira identidade do amor.
E nada como um bom encéfalo estourado no final das contas...
Boa escrita.
Gostei do poema lá na válvula. Posso publicar em post (citando a sua interação com o meu post, lógico)?
Beijo.
Tua fã, eu
.
Beijocas
uau, foi o texto mais diferente que li nesta data tão cheia de romantismos melosos ou de solteiros carentes...
sabe, lendo o texto imaginei q sua personagem despudorada fosse a Angela Diniz, aquela que o Doca Street matou, enfim adorei ler algo diferente;
beijos
muitíssimo bom!
me fez lembrar um amor
desses que a gente
esbarra por aí
e nos transforma
em bafo de maria fumaça
que de desfaz no ar
só pra gente
lembrar que tem
trilho demais
pra ficar parado...
beijos daqui...
São pessoas muito diferentes, e apesar de se dizer que os opostos atraem-se, estas pessoas vêm o amor de forma diferente.
E apesar de não achar bem, a visão dela é a que perdura no nosso mundo...
Beijo *
Nossa, que texto mais triste. Lindo, de qualquer forma...
Muito interessante o poder de comoção que as palavras bem tecidas tem.
Enfim um texto despido de amor idealizado!
Beijo!
Oie!
Tem coisinha pra vc no meu blog! :)
Bjm
você derrama frames com tanto cuidado, sobre mim. sobre todos nós. atados,
beijorge.
pootz, a-do-rei o texto!
vc sempre me surpreende, irmão. tbm sou sua fã!
e digo mais, muito feliz que vcs passaram lá no bar para nos ver! foi rapido, mas fiquei felicíssima!
e sim sim, compareceremos ao aniversário da sua amada. falar nisso, ela apareceu lá na livraria hoje. adoro o jeitinho dela cuidadoso de mãe comigo. é tbm minha irmà mais velha.
brindemos!
beijos! bom domingo hermano!
Oh! Outro cronista para concorrência, rs. Muito bom o texto, sem meias palavras. Vou confessar que ía passar só p/ deixar um beijo, mas acabei lendo o texto todo.
Então, beijo! ;)
Cada dia que passo por aqui saio mais surpreendida...
Voce tem uma maneira especial de escrever.
Esse texto nos tras a realidade.
Adorei simplismente!
Beijos
Doloroso e aberto como as portas e permissões ao desrespeito. O permitir o acesso a facas nas mãos de quem amamos. Bonito e doloroso.
texto perfeito pro dia 12.
me lembrou um pouco o meu.
um amor rimando mais com dor do que com cor.
cada palavra dela angustiva meu peito...
Mel dels... se inspirou na minha vida para escrever isso. Pode falar!
;)
rs
mas olha só... prsente pra vc lá no blog.
bjus
Forte.
Humano.
Quase real.
Fumaça de um final previsto.
Desencantado e necessário.
Escolhas últimas. Essa é a real ela. Sem saida possivel. Alimentada de amor, desfraldada de cor e razão. Mulher.
Bjs meus
Sem palavras, ou melhor, com uma só: fantástico.
Cruel e intenso...
Dolorido!
Mais que real,
(SU)real.
Muito bom! Dá uma cena teatral ótima! Mas muito diferente da forma como você costuma escrever...
Fui surpreendida!
Beijos virtuais.
Amor assim é coisa rara...
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