quinta-feira, 12 de junho de 2008

Desentendimentos ou De saída...

(Ele a olhou entrar com aquela arrogância de quem não deve nada a ninguém..)
- Boa noite.. (ele disse em tom de ofendido, vendo-a trazer os sapatos nos dedos da mão direita, um cigarro equilibrado nos lábios, a bolsa pendendo pra frente e as chaves na outra mão ainda junto à porta...)
- Ah.. oi.. você não devia fazer essas coisas.. eu posso me assustar algum dia.. parece um fantasma com essa cara pálida no meio do escuro.. (ela disse sorrindo desajeitadamente, tentando parecer ereta e equilibrada e fechando a porta. Isso, no entanto, provocou a queda de um dos sapatos.. ela sorriu mais largamente e se abaixou despudoradamente para pegá-lo.. ele olhou pras coxas dela e imaginou grandes roxos sob a meia-calça na penumbra.. imaginou o cheiro do suor misturado ao dela, ao tabaco e ao alcool..)
- Acho que não vai haver um dia! (ele disse tentando ser ríspido, mas sendo apenas seco..)
- Ãhn?! Ah.. bem.. (ela disse ficando ereta mais uma vez, sentindo uma tontura que pareceu mais importante que tudo até ali e tendo a impressão de sentir um cheiro..)
- Não está nada bem.
- Sim.. sim.. eu sei.. é que.. (ela apagou o cigarro contra as costas da porta numa quadratura já repleta de marcas negras pontuais..) .. desculpe.. eu limpo amanhã..
- Não precisa. (ele se levantou..) Eu tô indo embora..
- E pra onde você vai? (ela largou os sapatos no chão e tirou a bolsa com a outra mão..)
- Vou voltar pra casa.. de certo modo...
(Ela riu por dentro..) Pra SUA casa? (mas seus lábios apenas tremeram..)
- De certo modo.. eu vou.. tenho de ir.. não posso mais ficar nesse lugar com você...
- Claro, claro.. (ela disse se permitindo sorrir, dando de ombros, enquanto ia para o banheiro..) Pobre de você.. tão puro e imaculado antes de ser estuprado pelos meus maus modos... (ela baixou a calcinha, deixando a porta aberta e sentou-se no vaso...)
- Você podia ter tido alguma consideração por..
- Pela sua imaculada perfeição? Pelo seu cabelo bem penteado? Pela porra do teu carro zero? Ou quem sabe, pelos filhas da puta dos seus papais... (as palavras dela mesclavam-se ao som da urina encontrando a água parada no fundo do vaso.. seguiu-se o som da descarga e o do rolo de papel higiênico que é puxado..)
- Pelo meu amor.. (ele murmurou indo em direção à porta antes de puxá-la..)
- Mas eu tive.. (ela disse vindo do banheiro..) Eu comi o seu amor.. mastiguei cada pedacinho.. me enfastiei dele.. dormi perguiçosamente a cesta.. depois vomitei como cachorra apenas para comê-lo de novo.. e depois o expeli nas minhas fezes, na minha urina e no meu suor.. (ela alcançou a bolsa e tirou dela o isqueiro e a carteira de cigarro..)
- Mas eu prefiria ser saboreado.. curtido.. (ele disse deixando correr uma lágrima solitária..) Eu queria que você me amasse e não que me devorasse..
- Ora, meu bem, pois vá tomar no cú você e seu amor de principezinho acastelado.. aqui é o mundo de verdade.. amor movido a combustível batizado e altamente poluente.. (ela soprou a fumaça satisfatória da primeira tragada..)
- Você precisa dessas metáforas ridículas.. (foi o rancor que falou por ele..)
- Por que não? Não tenho medo de fazer comparações..
- Claro.. você e sua sábia experiência.. suas podres experiências..
- Pois é.. mas você bem que gostou.. (ela disse sorrindo com malicia, batendo a cinza no chão e voltando a tragar com um brilho felino nos olhos..)
- Eu.. eu.. eu estava.. intoxicado..
- Claro.. claro.. "é sempre mais fácil achar que a culpa é do outro..".. ou melhor.. é sempre mais fácil achar que a culpa não é nossa...
- Eu fiz tudo que eu podia.. enquanto você..
- Não, queridinho. Eu SEMPRE faço tudo que posso.. você, por outro lado, começou a parar de fazer por só se preocupar com o que eu faço..
(Ele preferiu virar-se mudo, xingando-a apenas com os olhos, enquanto passava pela porta.. mas à frente ele viu a moça a quem tinha pedido que aguarda-se. Ela era quase imperceptível nas sombras.. parecia fazer parte delas.. ela sorriu pra ele..) - Pronto?
- Sim.. (ele disse tentando esquecer o que se passara.. pensou com otimismo no que o aguardava..
Em outra direção, alguns passos para trás, uma mulher entrava no próprio quarto e encontrava o cadáver com uma bala nas idéias e os miolos vermelhos de forma impressionista estampados na parede...)

21 comentários:

Eu lírico disse...

Tudo que foi escrito aqui é tão humano, tão real que prendeu minha atenção do início ao fim e por alguns instantes roubou minha respiração.Ler seu espaço é sem dúvida sentir à poucos centímetros um turbilhão de emoções e idéias.
Vou tentar depois dessa adrenalina escrita recuperar o ar, terminar minha taça de vinho ouvindo minhas músicas prediletas, para depois entregar-me aos braços de Morfeu...
Até ....
Gláucia

Inaudita disse...

um manifesto antropofágico pelo amor...
Nada como comê-lo, processá-lo e cagá-lo devidamente.
E o que sair, é a verdadeira identidade do amor.
E nada como um bom encéfalo estourado no final das contas...
Boa escrita.
Gostei do poema lá na válvula. Posso publicar em post (citando a sua interação com o meu post, lógico)?
Beijo.

Das saias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vanessa Leonardi disse...

Tua fã, eu
.
Beijocas

A. Terada disse...

uau, foi o texto mais diferente que li nesta data tão cheia de romantismos melosos ou de solteiros carentes...
sabe, lendo o texto imaginei q sua personagem despudorada fosse a Angela Diniz, aquela que o Doca Street matou, enfim adorei ler algo diferente;
beijos

Camilinha disse...

muitíssimo bom!
me fez lembrar um amor
desses que a gente
esbarra por aí
e nos transforma
em bafo de maria fumaça
que de desfaz no ar
só pra gente
lembrar que tem
trilho demais
pra ficar parado...

beijos daqui...

Martinha disse...

São pessoas muito diferentes, e apesar de se dizer que os opostos atraem-se, estas pessoas vêm o amor de forma diferente.
E apesar de não achar bem, a visão dela é a que perdura no nosso mundo...

Beijo *

Flávia disse...

Nossa, que texto mais triste. Lindo, de qualquer forma...
Muito interessante o poder de comoção que as palavras bem tecidas tem.

Nathália E. disse...

Enfim um texto despido de amor idealizado!

Beijo!

Aline Ribeiro disse...

Oie!
Tem coisinha pra vc no meu blog! :)

Bjm

ana disse...

você derrama frames com tanto cuidado, sobre mim. sobre todos nós. atados,

beijorge.

Jacqueline disse...

pootz, a-do-rei o texto!
vc sempre me surpreende, irmão. tbm sou sua fã!
e digo mais, muito feliz que vcs passaram lá no bar para nos ver! foi rapido, mas fiquei felicíssima!
e sim sim, compareceremos ao aniversário da sua amada. falar nisso, ela apareceu lá na livraria hoje. adoro o jeitinho dela cuidadoso de mãe comigo. é tbm minha irmà mais velha.
brindemos!

beijos! bom domingo hermano!

Krika disse...

Oh! Outro cronista para concorrência, rs. Muito bom o texto, sem meias palavras. Vou confessar que ía passar só p/ deixar um beijo, mas acabei lendo o texto todo.

Então, beijo! ;)

Patrícia disse...

Cada dia que passo por aqui saio mais surpreendida...
Voce tem uma maneira especial de escrever.
Esse texto nos tras a realidade.
Adorei simplismente!
Beijos

Jaqueline Lima disse...

Doloroso e aberto como as portas e permissões ao desrespeito. O permitir o acesso a facas nas mãos de quem amamos. Bonito e doloroso.

Mah disse...

texto perfeito pro dia 12.
me lembrou um pouco o meu.
um amor rimando mais com dor do que com cor.

cada palavra dela angustiva meu peito...

Tatiani disse...

Mel dels... se inspirou na minha vida para escrever isso. Pode falar!
;)

rs

mas olha só... prsente pra vc lá no blog.
bjus

Avid disse...

Forte.
Humano.
Quase real.
Fumaça de um final previsto.
Desencantado e necessário.
Escolhas últimas. Essa é a real ela. Sem saida possivel. Alimentada de amor, desfraldada de cor e razão. Mulher.
Bjs meus

Artsy-Fartsy disse...

Sem palavras, ou melhor, com uma só: fantástico.

Marina Mah disse...

Cruel e intenso...
Dolorido!
Mais que real,
(SU)real.

Muito bom! Dá uma cena teatral ótima! Mas muito diferente da forma como você costuma escrever...
Fui surpreendida!

Beijos virtuais.

Anônimo disse...

Amor assim é coisa rara...