- Aí está você.
- Sempre estive aqui, nesse mesmo caminho que só pode ser o meu.
- Caminho que tomou de mim. Como tomei de seu avô.
- Nada disso. Eu rompi a sua lógica. Eu sou o novo. A liberdade. Você era estagnado. Não sabia como lidar com o mundo que tinha diante de você. Nós sempre fomos completamente diferentes.
- Se você prefere continuar pensando assim. Isso não mudou eras atrás, não mudará agora, pois tudo permanecerá do jeito que tem sido. Já dizia Gilberto Gil.
- O novo sempre vem diria Belchior.
- Sempre mais do mesmo digo eu mesmo. Bebida?
- Como aguentar isso se não?
- Fumaça? Amores? Abraços? Os refúgios seguem os mesmos oásis na vastidão do Saara. O que temes é perceber que não há paraíso a alcançar. Não há universo a salvar. Não há verso que conserte a assimetria do dilatar. Errantes a errar, como antes, até tudo esfriar.
- Você tagarela como se não pudesse contemplar tudo que fizemos. Cada pequeno grão estruturando essa magnífica sinfonia. Tanta luz. Tanto movimento. A dança. Uma obra única, apoteótica e sublime, possível com sua expulsão, seu ocaso advindo da vida carecer de dinâmicas, potências, calores e desejos.
- Como se não houvesse tudo isso no meu tempo. Aqui está você fruto de meus calores, não é mesmo?
- Você devorou meus irmãos e pretendia me devorar para manter as coisas como estavam. Você sempre pensou apenas em você mesmo.
- E você não?
- Eu libertei minhas irmãs e irmãos, salvei nossa mãe, povoei o mundo e organizei os espaços divinos. Embora seja uma conquista que precisa ser reeditada a cada dia, seguimos. Tudo isso graças a mim!
- Foi uma longa guerra a nossa. Mil anos é tempo mais que suficiente para discutir. Talvez nesse breve encontro, possamos tratar de outras coisas. Como vão suas crianças?
- Cresceram bastante. Já possuem suficiente vontade própria. Seguem seus próprios caminhos. Juno tem trabalhado muito e estou sempre a olhar por eles.
- Gostaria muito de poder estar com eles e testemunhar seu desenvolvimento. Dizem que ser avô muda tudo.
- Muda mesmo. Mas temo que você os achasse apetitosos demais...
- Isso foi uma piada? Parece que estamos progredindo.
- Quanto mais progredimos, mais nos afastamos. É o movimento com suas inexorabilildades.
- O progresso é apenas mais uma ilusão. Mais uma história bem contada a povoar de quimeras os corações dos tolos ansiosos por sentido. Melhor dançar com os astros.
- Mas a mudança é a única certeza imutável.
- As certezas são tão dignas de confiança quanto as Parcas. Elas te prometem um fio, enquanto seguram um novelo. Devo seguir. Centenas de anos se passarão até vê-lo de novo. De um forma estranha, sinto orgulho de você.
- Eu sinto apenas alegria por tê-lo superado.
- Parabéns, meu filho, parabéns. Seguimos. Eu com minha dança, você com seu caminho.
- Poderia ter sido diferente?
- Está sendo em cada pode ter sido. Não é o tempo ou o espaço, mas a forma com que é tecido.
- É muito. É mito. Minto se muto. Mato morto. Marco muros. Murros. Mundos. Mandos e mantos não movem moinhos. Sangro. Cancro. Esquartejado por mim. Para todos.
- Eu sei. Eu sigo...